Introdução
Na tradição ayurvédica, compreender a ação de uma planta, de um preparado ou mesmo de um alimento exige mais do que descrição botânica: demanda uma leitura em categorias que articulam substância, qualidade, potência e efeito. É esse mapa conceitual que a disciplina conhecida como sapta padārtha vijñāna – सप्त पदार्थ विज्ञान (Sapta Padārtha Vijñāna) oferece ao clínico, ao fitoterapeuta e ao estudioso. Neste texto propomos um percurso por cada uma das sete categorias — na ordem clássica — relacionando-as com o campo técnico da dravyaguṇa-vijñāna – द्रव्यगुणविज्ञान, a farmacologia ayurvédica: como cada padārtha explica por que um dravya produz certos efeitos, e como isso orienta escolhas terapêuticas e formulações.
Fundamentos
O termo padārtha indica os “sujeitos de apreensão”, as categorias em que se organiza o conhecimento terapêutico. Na prática do Ayurveda, essas categorias são ao mesmo tempo epistemológicas e operacionais: permitem descrever um remédio, predizer suas ações e combiná-lo com outros agentes de modo coerente. A escola de dravyaguṇa-vijñāna é a que sistematiza o estudo das substâncias (dravya) segundo seus atributos e efeitos — e é com essa lente que examinaremos cada padārtha.
Termos-chave
- dravya – द्रव्य (substância, o material que exerce efeitos)
- rasa – रस (sabor)
- guṇa – गुण (qualidade, atributo inerente)
- vīrya – वीर्य (potência térmica/energética — aquecedor ou refrigerante)
- vipāka – विपाक (resultado pós-digestivo, sabor transformado que determina efeito metabólico)
- prabhāva – प्रभाव (ação específica e inexplicada pelas outras categorias, às vezes chamada de “efeito singular”)
- karma – कर्म (ação terapêutica, função clínica — ex.: vincanā, śothahara, rasāyana)
- Dravyaguṇa-vijñāna – द्रव्यगुणविज्ञान (campo da farmacologia ayurvédica que correlaciona dravya, guṇa e karma)
Tópicos centrais
A seguir detalhamos cada um dos sete padārtha com definição clássica e sua articulação prática no estudo de plantas medicinais.
1. dravya – द्रव्य
Definição clássica: dravya é aquilo que existe e que, por suas qualidades, causa efeitos — inclui plantas, minerais, preparados e alimentos. No âmbito da dravyaguṇa-vijñāna, dravya é o ponto de partida: é a substância cuja totalidade precisa ser conhecida (parte usada, estação de coleta, preparo, sinergias).
Relação com Dravyaguṇa-Vijñāna: o dravya é estudado quanto aos seus guṇa, rasa, vīrya, vipāka e prabhāva para inferir o karma. Por exemplo, a identificação botânica correta entre brāhmī – ब्राह्मी (Bacopa monnieri) e maṇḍūkaparṇī – मण्डूकपर्णी (Centella asiatica) é um problema clássico de dravya: embora às vezes usadas de forma intercambiável popularmente, são dravyas distintos, com composições químicas e perfis terapêuticos diferentes.
2. rasa – रस
Definição clássica: rasa refere-se ao sabor percebido na cavidade oral; é o primeiro indicador de como uma substância interage com os doṣas e com o sistema digestivo. Existem seis rasas clássicos: madhura (doce), amla (ácido), lavaṇa (salgado), katu (picante), tikta (amargo) e kaṣāya – (adstringente é, em algumas listas, incluído como sexta; as formulações variam).
Relação prática: o rasa dá pistas imediatas sobre efeito nutritivo, ligridade e direcionamento terapêutico. Brāhmī (Bacopa monnieri) costuma apresentar um rasa predominantemente tikta (amargo) com nuances madhura (doce), o que ajuda a explicar sua ação sobre a mente e a estabilização do sistema nervoso. Maṇḍūkaparṇī (Centella asiatica), por sua vez, costuma ser mais madhura-tikta, o que contribui para sua capacidade de nutrir tecido e favorecer reparo.
3. guṇa – गुण
Definição clássica: guṇa são qualidades ou atributos que descrevem a natureza física e dinâmica de um dravya — por exemplo, guru (pesado), laghu (leve), śītala (frio), ushṇa (quente), snigdha (oleoso), rūkṣa (seco) etc. A combinação de guṇas determina muito do comportamento terapêutico.
Na prática: dravyas com guṇas snigdha e guru tendem a nutrir dhātus; aqueles com guṇas rūkṣa e laghu tendem a secar e promover madhya karma. Brāhmī é frequentemente descrita com guṇas más suaves, levemente snigdha, o que explica sua ação reconstrutiva em tecidos nervosos. Maṇḍūkaparṇī exibe guṇas mais refrescantes e também levemente leitosas, favorecendo regeneração e cicatrização.
4. vīrya – वीर्य
Definição clássica: vīrya é a potência energética de um dravya, classicamente dividida em ushna (aquecedora) e śīta (refrigerante). Vīrya modula as ações sobre os doṣas e sobre o metabolismo.
Exemplificando: quando um fitoterapeuta classifica uma erva como śīta-vīrya, isso orienta seu uso em condições de pitta em excesso. Na comparação entre brāhmī e maṇḍūkaparṇī, costuma-se atribuir a ambas um caráter predominantemente śīta — o que as torna úteis em estados de calor e inflamação cerebral ou mental — mas nuances de vīrya e combinações com outros dravyas podem inverter ou amplificar esse efeito.
5. vipāka – विपाक
Definição clássica: vipāka é o sabor que emerge após a digestão e que influencia o resultado metabólico final — madhura, amla ou katu são os três vipākas reconhecidos classicamente. O vipāka determina, por exemplo, se algo é mais ojas-stha e nutritivo (madhura-vipāka) ou mais amargo/detoxificante (aśla-vipāka).
Aplicação: uma erva com rasa tikta mas vipāka madhura pode apresentar efeito final nutritivo; portanto, conhecer o vipāka é essencial para prever a ação clínica. Tanto brāhmī quanto maṇḍūkaparṇī tendem a vipāka madhura, o que corrobora seu uso na promoção de nervos mais equilibrados e na nutrição do tecido nervoso.
6. prabhāva – प्रभाव
Definição clássica: prabhāva é o efeito específico e, por vezes, inexplicável, que não pode ser completamente deduzido apenas a partir de rasa, guṇa, vīrya e vipāka. É a marca singular de um dravya: aquilo que faz com que uma substância tenha ação reconhecível e repetível, mesmo quando suas qualidades aparentes não a justificam plenamente.
Observação prática: prabhāva é frequentemente invocado para descrever efeitos que a ciência moderna associa a constituintes químicos específicos (alcaloides, triterpenos, flavonoides). No caso de brāhmī, o prabhāva inclui sua clareza cognitiva e ação no aprimoramento da memória — hoje atribuída, em parte, aos bacosídeos. Em maṇḍūkaparṇī, o prabhāva engloba promoção de cicatrização e remodelagem de tecido conjuntivo, ligado aos triterpenos (asiaticosídeos).
7. karma – कर्म
Definição clássica: karma é a ação ou função terapêutica atribuída ao dravya — por exemplo, medhya (mente/nervos), rasāyana (rejuvenescedor), śothahara (anti-inflamatório), vatahara (redução de vata) etc. Karma é o objetivo prático: o que o terapeuta busca alcançar.
Relação integrativa: ao combinar rasa, guṇa, vīrya, vipāka e prabhāva, o estudioso de dravyaguṇa-vijñāna prevê o karma de um dravya e escolhe combinações para potencializar o efeito desejado. Assim, brāhmī é tipicamente categorizada como medhya (suporte cognitivo) e rasāyana leve; maṇḍūkaparṇī também tem aplicações medhya mas se aproxima de vraṇa-rohaṇa – व्रणरोहण (cicatrizante) e suporte a tvak/māṃsa-dhātu (pele/tecido).
Aplicações práticas
Como transformar essa teoria em procedimento? Abaixo algumas orientações práticas, pensadas para profissionais e estudantes do Ayurveda.
- Identificação do dravya: confirme a identificação botânica e a parte usada. Confundir brāhmī (Bacopa monnieri) com maṇḍūkaparṇī (Centella asiatica) compromete a ação da prescrição. Use herbário, fotos e fornecedores confiáveis.
- Leitura padārthica: catalogue rasa, guṇa, vīrya, vipāka e prabhāva do dravya. Essa leitura orientará o karma esperado e as contraindicações (por exemplo, evitar śīta-vīrya em distúrbios frios de vata sem aquecedores complementares).
- Formulação: combine dravyas com guṇa complementares. Um rasāyana pode exigir substâncias madhura e guru; um tratamento antiinflamatório pode priorizar rasas tikta e katu e guṇas rūkṣa/laghu, dependendo do contexto clínico.
- Observação empírica: registre efeitos clínicos e atributos de prabhāva que se manifestem na prática; a sistematização empírica alimenta a conservação do conhecimento e a segurança.
- Uso didático: ao ensinar fitoterapia, peça aos alunos que descrevam duas plantas próximas (p.ex. brāhmī e maṇḍūkaparṇī) através das sete categorias — isso revela diferenças sutis e reduz erros clínicos.
Estudo comparativo: brāhmī (Bacopa monnieri) x maṇḍūkaparṇī (Centella asiatica)
Aplicando as sete categorias a duas plantas frequentemente confundidas:
- dravya: brāhmī – ब्राह्मी (Bacopa monnieri) é uma planta aquática de folhas suculentas; maṇḍūkaparṇī – मण्डूकपर्णी (Centella asiatica) tem hábito rasteiro e folhas reniformes.
- rasa: brāhmī: tikta-madhura; maṇḍūkaparṇī: madhura-tikta (com maior ênfase no madhura)
- guṇa: brāhmī tende a ser laghu, snigdha suave; maṇḍūkaparṇī é snigdha, śīta e ligeiramente guru em termos de nutrição de tecidos.
- vīrya: ambas são predominantemente śīta, mas nuances podem variar conforme ecótipo e método de preparo.
- vipāka: ambas convergem para madhura-vipāka, o que favorece efeito nutritivo e restaurador.
- prabhāva: brāhmī apresenta prabhāva medhyajña — clareza mental e melhora da cognição (associada aos bacosídeos); maṇḍūkaparṇī tem prabhāva na reparação de matriz extracelular e vasos (asiaticosídeos).
- karma: brāhmī é clássico medhya e balya (fortificante para as funções mentais); maṇḍūkaparṇī atua como rasāyana local e sistemático, com ênfase em cicatrização, microcirculação e suporte cognitivo.
Essa comparação ilustra como as sete categorias orientam não apenas a escolha da planta, mas também a forma farmacêutica e as combinações: um chá de maṇḍūkaparṇī pode ser preferível para cicatrização tópica e suporte vascular, enquanto um chá de brāhmī ou extrato padronizado pode ser priorizado para memória e processamento cognitivo.
Considerações e cuidados
Algumas advertências práticas e epistemológicas ao aplicar o modelo dos sapta padārtha.
- Identificação botânica é obrigatória: sinônimos vernaculares e nomes populares são fontes comuns de erro. Consulte fornecedores certificados.
- Prabhāva e constituintes químicos: há correlação, mas a linguagem dos padārtha não se reduz à química moderna; preserve ambas as leituras e evite simplificações reducionistas.
- Interações e segurança: embora não prescrevamos doses aqui, saiba que plantas com vīrya ou vipāka específicos podem interagir com medicamentos modernos. Oriente sempre a consulta a um profissional qualificado.
- Qualidade e procedência: coleta, estação, secagem e armazenamento alteram guṇa e prabhāva. A prática do dravyaguṇa inclui avaliação sensorial e laboratoriais quando possível.
- Ética e historicidade: respeite o corpus clássico (Caraka, Suśruta, Aṣṭāṅga Hṛdayam) como guia interpretativo, mas conjugue-o com observação clínica contemporânea.
Conclusão
O estudo dos sapta padārtha é uma disciplina que articula teoria e prática: fornece as categorias que tornam possível entender por que uma substância age de certo modo e como combiná-la de forma coerente em formulações. A abordagem da dravyaguṇa-vijñāna amplia essa leitura ao correlacionar atributos clássicos com constituintes e efeitos observáveis. Ao distinguir com rigor dravya como brāhmī e maṇḍūkaparṇī, o praticante eleva a segurança e a eficácia das intervenções fitoterápicas. Para seguir nesta trilha, recomendo consultar obras clássicas e recursos contemporâneos, participar de formações específicas e, sempre, trabalhar com fornecedores confiáveis.
Para saber mais sobre nossas formações e práticas de fitoterapia, veja nossas formações e a página dedicada à fitoterapia ayurvédica no Espaço Arjuna.
Sapta Padārtha Vijñāna (the study of seven categories) is a foundational Ayurvedic framework for understanding why substances act as they do. This article outlines each category — dravya (substance), rasa (taste), guṇa (qualities), vīrya (thermal potency), vipāka (post-digestive effect), prabhāva (specific action), and karma (therapeutic function) — and situates them within Dravyaguṇa-Vijñāna, the pharmacological branch of Ayurveda. Practical examples compare brāhmī (Bacopa monnieri) and maṇḍūkaparṇī (Centella asiatica), highlighting differences in rasa, guṇa, vīrya, vipāka, prabhāva and resultant karma. The text offers guidance for identification, formulation and clinical observation, emphasizing botanical verification, quality control and the integration of classical knowledge with contemporary empirical methods. Readers are encouraged to consult classical sources and trusted resources for further study.
- Charaka Saṃhitā (texto clássico de referência para fundamentos de Ayurveda)
- Suśruta Saṃhitā (tratados de terapêutica e farmacologia clássica)
- Aṣṭāṅga Hṛdayam (compêndio sistemático de princípios e terapêuticas)
- Hindupedia (repositório de referências tradicionais)
- Vedic Heritage (recursos sobre literatura védica e ayurvédica)
- PubMed: Bacopa monnieri
- PubMed: Centella asiatica