Introdução
O termo Comprometimento Cognitivo Leve (MCI, do inglês Mild Cognitive Impairment) ocupa uma posição sensível entre o envelhecimento cognitivo considerado “dentro do esperado” e os estágios iniciais da demência. Para muitas pessoas e famílias, essa definição clínica levanta dúvidas: o que exatamente difere uma perda de memória atribuída à idade de algo que demanda atenção? Além da visão biomédica, o Ayurveda oferece uma leitura ancestral das alterações da memória e da mente que pode iluminar aspectos complementares — não substitutivos — do fenômeno. Neste texto, buscamos uma comparação cuidadosa entre o discurso biomédico sobre MCI e o entendimento ayurvédico clássico, centrado em conceitos como Smritibhransha — स्मृतिभ्रंश, Majja dhatu — मज्जाधातु e Mano vaha srotas — मनोवहस्रोतस्. O objetivo é esclarecer, sem prescrever: mapear convergências, limites e implicações epistemológicas, mantendo-nos estritamente no domínio informativo.
Fundamentos
Antes de aprofundar a comparação, é preciso explicitar os fundamentos de cada tradição: o que a biomedicina entende por MCI e como o Ayurveda organiza as funções da memória e da mente.
Termos-chave
- Smritibhransha — स्मृतिभ्रंश: categoria clássica do Ayurveda que descreve comprometimento da memória. Na primeira ocorrência, apresentamos a grafia em IAST e devanāgarī; nas menções subsequentes, usaremos apenas a grafia em IAST.
- Majja dhatu — मज्जाधातु: o tecido biológico e funcional associado ao sistema nervoso central e às substâncias que compõem os nervos e a medula óssea.
- Mano vaha srotas — मनोवहस्रोतस्: os canais e fluxos responsáveis pelas funções da mente (manas), pela percepção e condução das impressões mentais.
- Doṣa, dhātu, srotas: categorias operacionais do Ayurveda que descrevem desequilíbrios (doṣa), tecidos (dhātu) e canais/metabolismo (srotas).
Tópicos centrais
A seguir, examinamos de forma paralela e crítica os enquadramentos biomédico e ayurvédico sobre perda de memória leve, destacando pontos de contato e divergências.
Definição e critérios
No paradigma biomédico, MCI é uma síndrome clínica caracterizada por queixas cognitivas (frequentemente de memória), objetivadas por testes neuropsicológicos, com preservação geral das atividades independentes da vida diária e ausência de demência estabelecida. Critérios comuns incluem evidência de declínio cognitivo em comparação ao nível prévio, comprometimento mínimo em um ou mais domínios cognitivos e funcionalidade ainda preservada em atividades instrumentais do cotidiano. Assim, MCI é sobretudo uma categoria operacional, útil para vigilância, investigação de etiologias e estratificação prognóstica.
No Ayurveda, Smritibhransha agrupa alterações da memória como manifestação de desequilíbrios que afetam Majja dhatu e os canais que sustentam a manas (Mano vaha srotas). Em textos clássicos, a perda de memória é discutida em termos dos fatores que perturbam a coesão do manas — sejam desequilíbrios do doṣa, alterações no dhātu ou obstruções e corrupção dos srotas. A leitura ayurvédica não traça uma linha rígida entre “normal” e “patológico” com base apenas em testes, mas considera a constituição individual (prakṛti), o estado do agni, a presença de ama (resíduos não metabolizados) e a história de vida.
Etiologia e mecanismos postulados
Biomedicina: as causas possíveis de MCI são diversas — doenças neurodegenerativas em início (como a doença de Alzheimer), processos vasculares cerebrais, distúrbios metabólicos, efeitos de medicamentos, depressão e perturbações do sono. Pesquisas mostram que, em muitos casos, MCI pode progredir para demência, permanecer estável ou até melhorar, dependendo da etiologia e de fatores modificadores.
Ayurveda: a causa é situada em um conjunto de fatores que afetam o equilíbrio funcional. Vata, devido à sua qualidade móvel e sutil, é frequentemente apontado como o doṣa que produz desagregação nas funções neurossensoriais e de memória; por isso, manifestações de Smritibhransha são comumente associadas à predominância ou agravamento de Vata. Majja dhatu, quando enfraquecido ou corrompido, perde a capacidade de sustentar smriti (memória) e buddhi (discernimento). Mano vaha srotas, se obstruído por ama ou afetado por desequilíbrios dos doṣa, falha na condução adequada das impressões mentais.
Marco diagnóstico e avaliação
Na prática biomédica, a avaliação de MCI combina história clínica, testes cognitivos padronizados (por exemplo, Mini-Mental State Examination ou testes mais sensíveis), avaliação funcional e, quando indicado, neuroimagem e biomarcadores. A finalidade é descrever o perfil cognitivo e investigar causas potencialmente reversíveis ou tratáveis.
No Ayurveda clássico, o diagnóstico é qualitativo e profundamente individualizado: observa-se a prakṛti do indivíduo, sinais de desequilíbrio dos doṣa, integridade dos dhātu, qualidade do agni e presença de ama. A avaliação inclui observações da fala, lembrança, atenção, humor e padrões de sono, além de exame dos sinais tradicionais — todos interpretados à luz de uma etiologia funcional. Importante: esse diagnóstico tradicional não se presta, sem mediação, a equivaler tecnicamente aos instrumentos neuropsicológicos modernos; antes, oferece outra gramática explicativa para as mesmas manifestações observáveis.
Tempos, progressão e prognóstico
Biomedicina: estudos longitudinais indicam taxas variáveis de conversão de MCI para demência (dependendo do subtipo e de biomarcadores), com fatores de risco como idade avançada, genética (por exemplo, APOE ε4), comorbidades cardiovasculares e estilo de vida influenciando a trajetória.
Ayurveda: o prognóstico é considerado em função da natureza do desequilíbrio (agudo ou crônico), da constituição individual e da presença de fatores agravantes. Uma condição inicialmente leve, descrita como Smritibhransha, pode, diante de uma persistente agravamento de Vata e comprometimento de Majja dhatu, evoluir para quadros mais severos de confusão mental ou delírio, conforme textos clássicos. Ainda assim, os autores clássicos enfatizam a variabilidade individual e a importância de restaurar a coerência dos canais vitais.
Aplicações práticas (puras informativas)
A seguir, apresentamos implicações práticas de entendimento — estritamente informativas e comparativas — que podem ajudar leitores interessados a ampliar sua compreensão sem sugerir intervenções clínicas.
Leitura integrada das manifestações
Uma abordagem útil para profissionais e leigos é ver as duas narrativas como complementares: a biomedicina fornece critérios operacionais, instrumentos diagnósticos e modelos etiopatogênicos testáveis; o Ayurveda oferece uma perspectiva sistêmica, considerando fatores dinâmicos de estilo de vida, ritmos, nutrição e aspectos psíquicos que modulam vulnerabilidades. Por exemplo, queixas sutis de memória que ocorrem em contexto de sono irregular, alimentação inadequada e estresse crônico podem ser descritas biomedicamente e ayurvedicamente, cada uma com foco distinto — porém convergente na ideia de que múltiplos fatores influenciam o desempenho cognitivo.
Prevenção conceitual e atenção longitudinal
Ambos os paradigmas reconhecem a importância da vigilância longitudinal: observação contínua das mudanças cognitivas, identificação precoce de padrões e consideração ampla das condições de vida. No Ayurveda, recomendações clássicas relativas à rotina diária (dinacarya), sono, alimentação e manutenção do equilíbrio emocional aparecem como fatores decisivos para proteger Majja dhatu e os canais da mente. Na biomedicina, intervenções em fatores de risco cardiovascular, sono e depressão estão associadas a trajetórias cognitivas mais favoráveis — um ponto de contato pragmático entre as tradições.
Comunicação com familiares e cuidadores
Uma compreensão integrada ajuda a modular expectativas: MCI não é uma sentença única e irrevogável; há variabilidade prognóstica. Explicar aos familiares que as diferentes tradições descrevem causas múltiplas e trajetórias possíveis pode reduzir o pavor e criar espaço para estratégias de suporte cotidiano, proteção da autonomia e acompanhamento atento.
Considerações e cuidados
Ao confrontar paradigmas, algumas precauções epistemológicas e éticas são essenciais:
- Termos ayurvédicos, como Smritibhransha, Majja dhatu e Mano vaha srotas, não correspondem automaticamente a entidades biomédicas. Sua tradução deve ser feita com cautela, respeitando sua lógica própria.
- Evitar determinismos: nenhuma tradição prediz um destino unívoco. Ambas enfatizam variáveis modificadoras e a avaliação contínua.
- Limites do conhecimento: muitas relações entre conceitos fisiológicos modernos e categorias ayurvédicas permanecem hipóteses e requerem investigação interdisciplinar rigorosa.
- Ética informativa: este texto não recomenda exames, tratamentos ou condutas clínicas. Seu objetivo é oferecer um panorama comparativo e contextualizado.
Conclusão
Comparar a visão biomédica do MCI com a ótica ayurvédica é um exercício de ampliação de horizontes: de um lado, critérios diagnósticos e modelos etiopatogênicos testáveis; de outro, uma gramática clínica que integra corpo, psique, hábitos e meio ambiente. Onde a biomedicina delimita e estratifica, o Ayurveda amplia a narrativa para incluir constituição, canais vitais e estado dos tecidos, especialmente Majja dhatu e Mano vaha srotas, descrevendo Smritibhransha como expressão de desequilíbrios funcionais. Essa aproximação não busca sincretismo acrítico, mas estimular uma compreensão pluralista e respeitosa. Para aprofundar-se, recomenda-se a leitura de textos clássicos, revisões científicas atuais e recursos disponibilizados em nosso site, como a seção sobre introdução ao Ayurveda e os cursos e formações oferecidos pelo Espaço Arjuna. Uma informação ampla e bem fundamentada é o primeiro passo para diálogos responsáveis entre saberes.



