Diagrama ilustrativo dos 25 tattva do sankhya.

Sāṅkhya Darśana — 25 tattva, guṇa e kaivalya

Introdução

O Sāṅkhya – सांख्य é uma das escolas clássicas do darśana – दर्शन indiano, e uma matriz teórica que atravessa filosofia, teologia e prática contemplativa. A clareza de suas categorias e a economia conceitual fizeram do Sāṅkhya um mapa privilegiado para pensar a origem do sofrimento, a estrutura do mundo manifestado e a possibilidade da liberação — o kaivalya – कैवल्य. Embora frequentemente estudado em diálogo com o Yoga, o Sāṅkhya tem uma autonomia filosófica própria: oferece uma cosmologia, uma teoria da causalidade e uma epistemologia que visam desentrelaçar consciência e matéria, revelando condições para o discernimento libertador.

Fundamentos e relação Sāṅkhya–Yoga

Como darśana, o Sāṅkhya propõe uma ontologia dualista em termos técnicos e racionais. Seu quadro teórico descreve dois princípios primordiais: prakṛti – प्रकृति, a matéria primordial dotada de potência, e puruṣa – पुरुष, a consciência pura, distinta e numerosa. O par prakṛti/puruṣa orienta não apenas uma explicação cosmológica, mas também uma soteriologia: a libertação surge quando o puruṣa reconhece sua diferença em relação às modificações de prakṛti.

O diálogo entre Sāṅkhya e Yoga é antigo e fecundo. Enquanto Sāṅkhya sistematiza a metafísica da diferença, o Pātañjala-Yoga desenvolve um caminho prático para estabilizar o olhar do puruṣa sobre si mesmo — por exemplo, o famoso aforismo Yogaś citta-vṛtti-nirodhaḥ (Yogasūtra I.2) aponta para o controle das modificações mentais como caminho para o mesmo fim que Sāṅkhya delineia teoricamente. Uma diferença essencial é a presença ou ausência de īśvara (deus): o Sāṅkhya clássico tende a ser niriśvara (sem um princípio pessoal divino), ao passo que o Yoga aceita variadas leituras que podem integrar uma função ontológica ou devocional para īśvara. Essa convergência prática e divergência metafísica torna o estudo comparado um exercício esclarecedor, não de oposição.

Termos-chave

  • Sāṅkhya – सांख्य: a escola do conhecimento discriminativo entre aquilo que é consciente e aquilo que é material.
  • tattva – तत्त्व: ‘princípio’ ou ‘realidade’; no Sāṅkhya há 25 tattva que explicam a origem e a estrutura do mundo manifesto.
  • prakṛti – प्रकृति: a matéria primordial, inconsciente, portadora dos guṇa; fonte das evoluções.
  • puruṣa – पुरुष: consciência pura; pluralidade de puruṣa é característica clássica do sistema.
  • guṇa – गुण: qualidades constitutivas de prakṛti, especificamente sattva – सत्त्व, rajas – रजस् e tamas – तमस्.
  • kaivalya – कैवल्य: libertação, estado de isolamento do puruṣa, livre da identificação com prakṛti.
  • pramāṇa – प्रमाण: meios de conhecimento reconhecidos como válidos (pratyakṣa, anumāna, āptavacana/śabda).

Tópicos centrais

Guṇa – गुण: natureza e dinâmica

A noção de guṇa – गुण é central para entender porque prakṛti se transforma sem uma vontade externa. Sattva – सत्त्व corresponde a clareza, leveza cognitiva, harmonia e tendência à coesão e conhecimento. Rajas – रजस् representa atividade, agitação e energia de transformação; é o princípio da mobilidade, da paixão e do impulso. Tamas – तमस् é a inércia, a resistência, a obscuridade que promove estabilidade e olvido. Esses três não são substâncias separadas, mas modos coexistentes e interatuantes dentro de prakṛti.

A dinâmica dos guṇa explica estados psicológicos e processos cosmológicos: predominância de sattva tende a lucidez, rajas a inquietação e desejo, tamas a apatia e enraizamento. O equilíbrio funcional dos guṇa permite funções adaptativas; o desequilíbrio, identificado no pensamento sāṅkhya, origina apego, erro cognitivo e sofrimento. Na prática contemplativa, a transformação dos humores psíquicos é observada como deslocamento relativo entre guṇa, sem que o puruṣa seja afetado ontologicamente por eles.

Cosmologia dos 25 tattva – तत्त्व

O coração do Sāṅkhya é a sequência dos 25 tattva — uma genealogia que descreve como o unmanifesto se torna manifesto. A ordem importa porque cada emergente é causalmente dependente do anterior e condiciona o posterior.

1) prakṛti – प्रकृति

Prakṛti é o princípio material primordial: indiferenciado, potencialmente dotado dos três guṇa. É causa mātṛkā, o campo das possibilidades. Sua natureza é inconsciente; contudo, em suas mutações, produz a aparência de agência e conhecimento.

2) mahat / buddhi – बुद्धि

O primeiro evoluto consciente de prakṛti é mahat, frequentemente identificado com buddhi – बुद्धि, a faculdade discriminativa e inteligencial. Buddhi é a sede da ordenação e da visão correta; é, portanto, o lócus da determinação que pode reconhecer ou não o puruṣa. Sua função é avaliar e conferir identidade a conteúdos.

3) ahaṃkāra – अहंकार

Ahaṃkāra é a sensação de ‘eu’ emergente a partir de buddhi. É o princípio que diferencia: ‘isto é meu’ ou ‘isto sou eu’. Ahaṃkāra divide-se em tendências que poderão manifestar-se como aspectos cognitivos, sensoriais e motores.

4) manas – मनस्

Manas é a mente processante, responsável pela coordenação dos indriya e pela mediação entre buddhi/ahaṃkāra e os objetos. É o órgão central do processamento temporal, atenção e decisão imediata; diferente de buddhi, é mais ligado à função executiva e às ligações com o mundo sensorial.

5) Os 10 indriya – इन्द्रिय

Do ahaṃkāra também surgem os indriya – इन्द्रिय, divididos em cinco jñānendriya (órgãos do conhecimento) e cinco karmendriya (órgãos da ação):

  • Jñānendriya: śrotra (ouvido), tvak (pele/ tato), caksus (visão), rasana (paladar), ghrāṇa (olfato) — equivalentes a śabda/śabda? Na ordenação clássica são referidos como śabda/śravaṇa? Aqui nomeamos pela função.
  • Karmendriya: vac (fala), pāyu (excreção), pāna (locomoção/ambulação), pāna? (respiração motor?), hasta/pād? — as formulações tradicionais enumeram vak (fala), pāda (locomoção), pāyu (eliminação), hasta/pada etc.; o essencial é que são os meios pelos quais o organismo age no mundo.

Na experiência cotidiana, os jñānendriya captam dados; os karmendriya respondem. Ambos dependem de manas para integrar e direcionar a atividade. São, portanto, efeitos derivados de prakṛti e instrumentos da identificação do puruṣa com o mundo.

6) Os 5 tanmātra – तन्मात्र

Os tanmātra – तन्मात्र são as sutis qualidades elementares que precedem a formação dos grandes elementos: śabda – शब्द (sonoridade), sparśa – स्पर्श (tato), rūpa – रूप (forma/visibilidade), rasa – रस (sabor), e gandha – गन्ध (odor). Cada tanmātra fornece a matriz sensorial que, combinada, gera os mahābhūta.

7) Os 5 mahābhūta – महाभूत

Dos tanmātra nascem os mahābhūta – महाभूत, os grandes elementos que constituem o mundo manifesto: ākāśa – आकाश (espaço/éter), vāyu – वायु (vento/ar), tejas/agneya – तेजस्/अग्नि (fogo/luz/calor), āpas/jala – आपस्/जल (água) e pṛthivī – पृथिवी (terra). Cada elemento resulta de certa combinação e predomínio de tanmātra, conferindo propriedades físicas e perceptíveis.

8) puruṣa – पुरुष

Puruṣa é consciência pura, cognoscente e isolada em sua essência do fluxo de prakṛti. O clássico Sāṅkhya aceita a pluralidade de puruṣa: são muitos, coexistem com prakṛti e se tornam, por identificação errônea, sujeitos do sofrimento. O papel do puruṣa na experiência é sempre passivo no sentido causal — ele não age materialmente — mas ativo no sentido de iluminar ou testemunhar. A libertação (kaivalya) consiste em reconhecer esta testemunha inerte e distinguir seu lugar em relação à cadeia causal de prakṛti.

Causalidade e transformação

Do ponto de vista Sāṅkhya, a produção do manifestado segue o princípio do satkāryavāda – सत्कार्यवाद: o efeito existe, potencialmente, na causa. Em outras palavras, aquilo que emerge já estava, de algum modo, implicado na substância causante. Em consequência, o sistema rejeita a produção ex nihilo — nada surge do nada — e descreve a evolução como pariṇāma – परिणाम, uma transformação real e progressiva do potencial em atualidade.

Essa visão explica por que a mudança não é mera aparência: prakṛti transforma-se, e suas modalidades (guṇa, mahat, ahaṃkāra etc.) são alterações reais. Ao mesmo tempo, porque puruṣa é distinto e não é afetado ontologicamente, sua libertação não é transformação da própria consciência, mas o reconhecimento de sua natureza distinta. A evolução, portanto, ancora em prakṛti; puruṣa oferece o princípio discriminativo que, quando desperto, interrompe a identificação causadora do sofrimento.

Epistemologia (pramāṇa – प्रमाण)

Sāṅkhya admite meios de conhecimento rigorosos: pratyakṣa – प्रत्यक्ष (percepção direta), anumāna – अनुमान (inferência lógica) e āptavacana/śabda – आप्तवचन/शब्द (testemunho fidedigno, frequentemente dos śāstra ou de sábios). Esses pramāṇa fundamentam tanto a cosmologia quanto a prática de discernimento. A percepção verifica estados empíricos; a inferência permite postular realidades não imediatamente perceptíveis — por exemplo, a existência de prakṛti ou pluraridade de puruṣa a partir de efeitos observáveis; e o śabda guarda o acervo de sabedoria acumulada que orienta a interpretação e evita armadilhas subjetivas.

Um exemplo prático: observando a atividade mental perturbada (pratyakṣa), infere-se (anumāna) que há uma mistura predominante de rajas e tamas; a leitura dos textos clássicos (āptavacana) corrobora estratégias de distinção e de cultivo de sattva para permitir a visão discriminativa. Assim, a epistemologia sāṅkhya funciona como uma caixa de ferramentas integradas para conhecimento e transformação.

Soteriologia e a ética do discernimento

A motivação para o empreendimento filosófico e prático do Sāṅkhya é o trividha-duḥkha – त्रिविध दुःख: as formas de sofrimento que afetam o ser humano em três frentes — ādhyātmika (interno, ligado à psique e corpo), ādhibhautika (relacionado a outros entes) e ādhidaivika (relacionado a forças naturais ou destino). Reconhecer a amplitude do sofrimento conduz à urgência do viveka-khyāti – विवेकख्याति: o discernimento claro entre puruṣa e prakṛti.

Viveka-khyāti não é apenas um insight intelectual; é um modo de vida que combina estudo atento dos textos, observação interior, contemplação e conduta que favoreça a predominância de sattva. Isso tem implicações práticas: disciplina intelectual, moderação nos hábitos, atenção ética nas relações e cultivo de práticas que permitam a estabilização da mente. Ao separar o observador (puruṣa) do observado (prakṛti), dissolve-se a identificação que gera apego, medo e angústia — condições que obscurecem a lucidez da testemunha.

Citações clássicas (Sāṅkhya Kārikā — Īśvarakṛṣṇa)

  1. SK 1 — “Sāṅkhya apresenta a diferenciação entre o consciente e o material.” (tradução livre).
  2. SK 3 — “Prakṛti é a matriz do manifestado; seus guṇa explicam a variedade do mundo.” (tradução livre).
  3. SK 7 — “Buddhi (mahat) é o grande princípio da inteligência, base de toda discriminação.” (tradução livre).
  4. SK 14 — “Ahaṃkāra gera as modalidades da mente e dos órgãos; é o nó da identificação.” (tradução livre).
  5. SK 20 — “Os tanmātra são sutis, mas constituem, ao combinar-se, os grandes elementos.” (tradução livre).
  6. SK 25 — “Puruṣa é testemunha pura; não participa das paixões de prakṛti.” (tradução livre).
  7. SK 35 — “A libertação é o reconhecimento da diferença e o fim da identificação.” (tradução livre).
  8. SK 50 — “O correto conhecimento (viveka) dissipa o erro e conduz à liberdade.” (tradução livre).

Opcionalmente, a ponte com Yoga pode ser lembrada pelo aforismo patanjaliano: Yogasūtra I.2 — “Yoga é a cessação das vṛtti da mente” — que, em diálogo com Sāṅkhya, indica método prático para o mesmo objetivo de discernimento apontado nas kārikā acima.

Aplicações práticas

Conhecer a anatomia dos 25 tattva é, para o praticante contemporâneo, uma ferramenta de auto-observação: identificar quando a mente age como manas ou como buddhi; reconhecer a preponderância de rajas quando surgem agitação e desejo; notar a sombra tamásica na apatia. Essas distinções permitem intervenções éticas e práticas — estudo reflexivo, redução de estímulos excessivos, cultivo de hábitos que favoreçam sattva — sem que o Sāṅkhya prescreva receitas únicas.

Em termos pedagógicos, estudar Sāṅkhya no contexto de um curso teórico-prático (por exemplo, em programas como os oferecidos em https://espacoarjuna.com.br/cursos) ajuda a traduzir categorias abstratas em observações vivas. Ler o texto clássico acompanhado de comentários e praticar formas de quietude mental que o Yoga propõe — detalhados em outras postagens do https://espacoarjuna.com.br/blog — é uma via equilibrada entre teoria e experiência.

Considerações e cuidados

Trabalhar com Sāṅkhya exige cautela para não transformar categorias filosóficas em puras etiquetas psicológicas. O sistema é uma construção teórica rigorosa e seu uso prático depende de rigor hermenêutico: evitar reducionismos, não misturar de forma acrítica conceitos de escolas diferentes e não fazer afirmações deterministas sobre destino ou cura. Além disso, a pluralidade de interpretações históricas e comentários exige postura crítica diante de leituras simplistas.

Finalmente, é importante lembrar que Sāṅkhya não prescreve ritos nem milagres; oferece um mapa para o discernimento. Para quem busca integrar suas ideias à vida cotidiana, a recomendação ética é a moderação, a reflexão acompanhada e o estudo com professores qualificados.

Conclusão

Sāṅkhya permanece, milenar e contemporâneo, um instrumento de clarificação. Sua anatomia dos 25 tattva, aliada à teoria dos guṇa e a uma epistemologia que valoriza percepção, inferência e testemunho fidedigno, oferece uma via coerente para compreender porque nos perdemos na identificação com o mundo e como o discernimento pode restaurar a liberdade do puruṣa — o kaivalya. Quem desejar aprofundar-se pode encontrar caminhos em cursos e textos comentados, bem como explorar publicações e recursos confiáveis que conectam a filosofia clássica à prática moderna. Para orientações formativas, recomendamos consultar nossas páginas de https://espacoarjuna.com.br/cursos e do https://espacoarjuna.com.br/blog, além de estudos e traduções críticas disponíveis em repositórios especializados.

The Sāṅkhya darśana outlines a coherent dualist ontology distinguishing prakṛti (primordial matter) and puruṣa (pure consciousness) through a sequence of 25 tattva. Central to its account are the three guṇa — sattva, rajas and tamas — which modulate psychological and cosmological processes. Sāṅkhya’s theory of causality (satkāryavāda) and transformation (pariṇāma) rejects creation ex nihilo and presents evolution as the real manifestation of latent potentialities. Its epistemology recognizes pratyakṣa (perception), anumāna (inference) and āptavacana/śabda (authoritative testimony) as valid means of knowledge. The soteriological proposal hinges on viveka-khyāti, the discriminative insight that disidentifies puruṣa from prakṛti, culminating in kaivalya. This article sketches the 25 tattva in order, discusses causal relations and offers contemporary applications for study and contemplative practice, grounded in textual tradition and mindful interpretation.

  • Sāṅkhya Kārikā (Īśvarakṛṣṇa) — texto clássico da escola Sāṅkhya.
  • Yogasūtra de Patañjali — para diálogo entre Sāṅkhya e Yoga (ex.: I.2).
  • Hindupedia — verbetes e introduções críticas sobre Sāṅkhya (https://www.hindupedia.com).
  • Vedic Heritage — acervo e ensaios sobre filosofia indiana (https://www.vedicheritage.in).
  • Sacred-texts / Internet Archive — repositórios digitais com traduções e comentários clássicos.

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