Introdução
O tromboembolismo pulmonar (TEP) representa uma emergência médica marcada pela oclusão súbita de um vaso pulmonar por um êmbolo, tipicamente um coágulo originado nas veias profundas dos membros inferiores. À medida que expandimos a compreensão desse quadro, torna‑se produtivo confrontar e dialogar entre paradigmas distintos: a visão biomédica, com sua ênfase em anatomia, fisiologia e tecnologia diagnóstica; e o enquadramento do Ayurveda, que interpreta doenças através de doṣa, dhātu, srotas e processos de acumulação ou obstrução. Este texto busca oferecer uma análise aprofundada dos conceitos, pontos de convergência e limites dessa comparação, sem pretender oferecer protocolos terapêuticos ou substitutos ao atendimento de emergência.
Fundamentos
Antes de aprofundar a análise comparativa, convém sistematizar os conceitos-chave de cada sistema e apresentar os termos tradicionais que serão usados ao longo do texto.
Termos-chave
- rakta dhātu – रक्तधातु: o tecido sanguíneo, responsável pela circulação, nutrição dos tecidos e transporte.
- prāṇa-vāha srotas – प्राणवाह-स्रोतसः: canais ou vias que transportam e sustentam o prāṇa – प्राण (energia vital), intimamente ligados à respiração e às funções cardiorrespiratórias.
- kapha doṣa – कफ-दोष: uma das três energias fundamentais (doṣa) associada à coesão, estabilidade, fluidez e às qualidades pesadas e frias; quando em desequilíbrio, promove estase e obstrução.
- āma – आम: produto da digestão ineficiente, substância tóxica/viscosa que se acumula nos srotas e favorece obstrução e processos patológicos.
- lakṣaṇa – लक्षण: sinais e sintomas clínicos observáveis de uma condição.
- nidāna – निदान: causas e fatores etiológicos segundo o sistema ayurvédico.
- cikitsā – चिकित्सा: linhas gerais de tratamento e manejo, em sentido amplo.
Tópicos centrais
Este capítulo explora o escopo e os limites do paralelismo entre a biomedicina e o Ayurveda, seguido pela comparação da etiologia, da avaliação e do curso do TEP.
Escopo e limites do paralelismo
Comparar duas tradições de conhecimento implica reconhecer metodologias, objetivos e linguagens distintas. A biomedicina descreve o TEP através de processos mecanicistas: trombose venosa profunda (TVP), desprendimento de êmbolos, obstrução vascular pulmonar, resposta inflamatória e impacto hemodinâmico que culmina, em graus variados, em hipóxia, insuficiência ventricular direita e choque. O Ayurveda, por sua vez, opera em categorias funcionais e qualitativas — doṣa, dhātu, srotas — que capturam padrões de desequilíbrio e vulnerabilidades individuais.
O paralelo é heurístico e útil quando feito com cuidado: determinadas imagens são compatíveis — por exemplo, a ideia de uma “obstrução” nos srotas quando aplicável ao TEP —, mas não se pode traduzir automaticamente cada entidade biomédica em uma única categoria ayurvédica. O perigo da redução mútua existe em ambos os lados: definir o TEP apenas como alteração de kapha seria insuficiente na prática clínica biomédica; descrevê‑lo exclusivamente em termos de trombose mecânica perde nuances do estado fisiopsicológico que o Ayurveda considera relevantes.
Etiologia e causalidade: visão biomédica
Na biomedicina, o TEP é tipicamente secundário à trombose venosa profunda e sua migração para a circulação pulmonar. Fatores de risco clássicos incluem imobilização prolongada, cirurgia (especialmente ortopédica de grande porte), trauma, câncer ativo, estados de hipercoagulabilidade (trombofilias), uso de contraceptivos hormonais em certos contextos, obesidade, idade avançada e história prévia de trombose. A fisiopatologia envolve a tríade de Virchow: estase venosa, lesão endotelial e hipercoagulabilidade. O quadro clínico pode variar de assintomático a iminente risco de vida, com manifestações como dispneia súbita, dor torácica pleurítica, taquicardia, síncope e hemoptise.
Etiologia e causalidade: perspectiva do Ayurveda
O Ayurveda não conhece o conceito anatômico de “êmbolo”, mas oferece categorias que ajudam a conceituar padrões que levariam a um evento súbito de insuficiência respiratória e circulação comprometida. Em termos ayurvédicos, poderíamos descrever o processo assim: acúmulo de āma – आम – em srotas relacionadas à circulação (incluindo prāṇa-vāha srotas – प्राणवाह-स्रोतसः e rasavaha srotas), concomitante a estase e agravamento de kapha doṣa – कफ-दोष, que provoca obstrução, juntamente com vitiamento do rakta dhātu – रक्तधातु. Alterações de vata doṣa – वात‑दोष (seu papel não deve ser ignorado) também podem precipitar deslocamentos e manifestações súbitas, pois vata governa movimento e transformação.
Nidāna – निदान ocorre como fator predisponente: dieta e estilo de vida que promovem estase (samyoga), ingestão de alimentos pesados e frios, inatividade prolongada, exposição a ambientes frios/úmidos, processos inflamatórios crônicos (que geram āma) e distúrbios metabólicos que enfraquecem o rakta dhātu. Em indivíduos com predisposição (prakṛti – प्रकृति), tais condições criam terreno para uma obstrução súbita nos canais vitais.
Avaliação e curso do TEP
É imprescindível separar o que a medicina convencional exige imediatamente daquilo que o Ayurveda pode acrescentar em termos de compreensão e suporte.
Avaliação biomédica e curso clínico
No pronto-socorro, a suspeita de TEP exige avaliação rápida: anamnese focada, exame físico, oxigenação arterial, eletrocardiograma, exames laboratoriais dirigidos (entre eles, dímero-D como teste de triagem quando interpretado com preestabilidade) e, em geral, exame de imagem para confirmação — angiotomografia por tomografia computadorizada (angio‑TC) de tórax ou cintilografia de ventilação/perfusão em situações específicas. A estratificação de risco (por exemplo, PESI/sPESI) orienta condutas: anticoagulação, trombólise em casos selecionados, embolectomia cirúrgica ou percutânea quando indicado e suporte ventilatório/hemodinâmico conforme necessidade. O curso pode variar da resolução completa após terapia adequada até sequelas crônicas (hipertensão pulmonar tromboembólica crônica) com impacto funcional a longo prazo.
Avaliação ayurvédica e curso segundo o Ayurveda
O exame ayurvédico complementa a leitura biomédica ao incorporar avaliação do prakṛti, agni (capacidade digestiva e metabólica), estado dos dhātus e presença de āma. Para um quadro que apresenta-se como TEP, a observação buscará lakṣaṇa – लक्षण compatíveis: dispneia súbita, dor torácica, taquicardia, cianose (como manifestação de rakta dhātu comprometido), sensação de peso no peito (sugerindo kapha), confusão ou síncope (indicando comprometimento de prāṇa – प्राण). O pulso (nadi parīkṣā) pode revelar padrões de vitiamento de doṣas, especialmente sinais de kapha estagnado e vata deslocado.
O curso, do ponto de vista ayurvédico, dependerá da rapidez com que a obstrução é resolvida (liberação do srotas) e de quanto dano foi infligido ao rakta dhātu e aos gharas funcionais do prāṇa-vāha srotas. Se a obstrução gera inflamação e degradação do dhātu, a recuperação será mais longa e sujeita a sequelas crônicas.
Linhas gerais de lakṣaṇa, nidāna e possíveis linhas de cikitsā no contexto do Ayurveda
Ressalto: a seguir constam termos clínicos tradicionais e linhas gerais de manejo segundo o Ayurveda — não se trata de protocolo terapêutico para uso em emergência. Em caso de suspeita de TEP, procurar atendimento médico imediato é imperativo.
lakṣaṇa – लक्षण (sinais e sintomas)
- dispneia súbita e intensa;
- dor torácica pleurítica, geralmente unilateral;
- taquicardia, sudorese, sensação de pânico;
- tosse com ou sem hemoptise;
- síncope ou presíncope em apresentações graves;
- signos de estase venosa nas extremidades (inchaço, dor) quando associado à TVP.
nidāna – निदान (causas/condições predisponentes, em termos ayurvédicos)
- inatividade prolongada, má circulação: fatores que promovem estase de kapha doṣa – কফ‑দোষ;
- dieta inadequada e agni deprimido, gerando āma – आम que obstrui srotas;
- condições crônicas inflamatórias e metabólicas que debilitem rakta dhātu – रक्तधातु;
- trauma ou cirurgia (que, segundo a lógica ayurvédica, podem provocar deslocamento de doṣas e dāha — inflamação local sistêmica), e uso prolongado de medicamentos que perturbem o metabolismo.
cikitsā – चिकित्सा (linhas gerais de manejo, em sentido amplo)
O Ayurveda sugere enfoques que visam restaurar o fluxo nos srotas, pacificar doṣas em desequilíbrio, eliminar āma e nutrir os dhātus. Em termos gerais e não prescritivos, essas linhas incluem:
- Medidas de emergência biomédicas são prioritárias: estabilização, oxigenação e avaliação hospitalar imediata.
- Posteriormente, quando apropriado e sempre coordenado com a equipe médica, o Ayurveda pode recomendar intervenções para corrigir agni, reduzir āma e restabelecer o fluxo (por exemplo, modificações dietéticas, terapias externas e procedimentos tradicionais em ambiente clínico especializado).
- Dravyas (exemplos de plantas citadas na tradição) que aparecem em textos clássicos por seu efeito em fortalecer o rakta e modular inflamação: guḍūcī – गुडूची (Tinospora cordifolia), harītakī – हरितकी (Terminalia chebula) e triphalā – त्रिफला (mistura tradicional), sempre como parte de uma formulação e avaliação clínica ampla.
- Atuação sobre o estilo de vida: mobilização precoce, higiene do sono, respiração consciente (prāṇāyāma – प्राणायाम) compatível com as limitações e sob supervisão, e ajustes dietéticos para reduzir kapha e āma.
Uma nota de segurança: procedimentos como raktamokṣaṇa (flebotomia terapêutica) ou intervenções mais invasivas têm indicações e riscos específicos; sua realização deve ocorrer apenas em ambientes clínicos com expertise integrativa, e nunca substituir atendimento de emergência cardiopulmonar.
Aplicações práticas: integração responsável na clínica
Quando bem coordenadas, as duas tradições podem oferecer complementaridade: a biomedicina fornece a resposta imediata e tecnologicamente baseada que salva vidas; o Ayurveda pode oferecer estratégias de prevenção secundária, reabilitação e suporte para reduzir recidivas e melhorar a resiliência do indivíduo.
Na prevenção primária e secundária
- Identificação de fatores de risco e mudança de estilo de vida: atividade física, manejo de obesidade, cessação do tabaco, revisão de medicações e atenção a períodos de imobilização.
- Restauração do agni e redução de āma: medidas dietéticas e rotinas diárias que reduzam a tendência à estase (evitar alimentos frios e pesados, favorecer digestíveis, rotinas regulares de sono e movimento).
- Práticas respiratórias e posturais: prāṇāyāma – प्राणायाम e āsana – आसन adaptados podem fortalecer a capacidade respiratória e favorecer o fluxo prāṇico, sempre com cautela em casos com comprometimento cardiorrespiratório.
Na reabilitação
- Programa integrado de reabilitação cardiorrespiratória que inclua fisioterapia, treino de resistência, práticas de respiração e orientações nutricionais alinhadas entre equipes integrativas.
- Monitoramento clínico e ajuste de medidas ayurvédicas para suporte do rakta dhātu – रक्तधातु e manutenção da fluidez dos srotas, em sintonia com anticoagulação e orientações médicas.
Considerações e cuidados
Alguns pontos de cautela e limites práticos que devem nortear qualquer tentativa de integração:
- O TEP é uma emergência médica: priorizar sempre o atendimento hospitalar e seguir protocolos de emergência da medicina baseada em evidências.
- Evitar conflitos terapêuticos: muitas plantas e formulações podem interagir com anticoagulantes e outros fármacos. A comunicação entre o médico e o terapeuta ayurvédico é essencial.
- O paralelismo conceitual tem limites: categorias como doṣa e dhātu são funcionais e não equivalem diretamente a estruturas anatômicas ou mediadores bioquímicos sem uma interpretação criteriosa.
- Em casos agudos, intervenções tradicionais não substituem procedimentos médicos urgentes (trombolíticos, anticoagulação, embolectomia, suporte ventilatório/ hemodinâmico).
Conclusão
O confronto entre a leitura biomédica do tromboembolismo pulmonar e a interpretação do Ayurveda revela tanto divergências quanto convergências férteis. A biomedicina oferece descrições precisas da fisiopatologia, meios diagnósticos e intervenções emergenciais comprovadas; o Ayurveda contribui com uma visão sistêmica do terreno individual — agni, presença de āma, estado do rakta dhātu e a dinâmica dos srotas — que pode enriquecer estratégias preventivas e reabilitadoras. No entanto, é fundamental respeitar prioridades: em uma crise de TEP, a resposta imediata e baseada em recursos biomédicos salva vidas. A integração responsável se dá em contextos de comunicação interprofissional, evidência e cuidado centrado no paciente, onde o Ayurveda pode atuar como suporte complementar para recuperar equilíbrio e reduzir riscos futuros.
Para quem deseja aprofundar o estudo teórico e prático dessa integração, indicamos programas de formação como nossa pós-graduação em Ayurveda e iniciativas de formação em práticas integrativas, por exemplo a pós-graduação em Yoga, bem como a leitura crítica de artigos científicos e textos clássicos.



