Imagem ilustrativa de úlcera péptica com sangramento e perfuração

Úlcera péptica complicada (sangramento/perfuração)

Introdução

Úlceras pépticas complicadas — especificamente aquelas que cursam com sangramento ativo ou perfuração visceral — representam emergências que requerem compreensão tanto da ciência biomédica quanto de perspectivas tradicionais, como o Ayurveda. Pela abordagem biomédica, trata-se da patogênese envolvendo Helicobacter pylori, uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), disrupção da barreira mucosa e isquemia; no campo do Ayurveda, o mesmo quadro pode ser interpretado por conceitos centrais como o agni – अग्नि, o āma – आम e o desequilíbrio dos doṣa – दोष. Este artigo explora essa raiz dual, descreve mecanismos, orienta sobre diagnóstico e terapêutica contemporânea, e apresenta uma análise comparativa segundo o Ayurveda, sempre com atenção ética para não substituir a avaliação clínica.

Fundamentos

Para entender os dois sistemas de saber, é necessário definir alguns termos e princípios que orientam interpretação e ação.

Termos-chave

  • agni – अग्नि: em Ayurveda, refere-se ao fogo digestivo e metabólico que transforma alimentos, ama e tecidos. Manifesta-se em diferentes níveis (jatharagni, dhātuagni).
  • āma – आम: produtos não digeridos ou toxinas metabólicas resultantes de digestão ineficaz; considerado fator patogênico central.
  • doṣa – दोष: forças bioenergéticas (vāta – वात, pitta – पित्त, kapha – कफ) cuja alteração determina diferentes padrões de doença.
  • pittaja grahaṇī – पित्तज ग्रहणी: termo ayurvédico que descreve um padrão em que predominam distúrbios de pitta no trato digestivo, frequentemente associados a queimação, inflamação e erosões mucosas.
  • lakṣaṇa – लक्षण: sinais e sintomas que caracterizam um quadro clínico.
  • nidāna – निदान: causas e fatores etiológicos.
  • cikitsā – चिकित्सा: linhas terapêuticas, que no contexto clínico incluem tanto medidas agudas quanto ações de reabilitação, conforme o Ayurveda.
  • auṣadha – औषध e dravya – द्रव्य: medicamentos e substâncias usadas em aushadha-yoga; exemplos clássicos incluem guḍūcī – गुडूची, harītakī – हरितकी e triphalā – त्रिफला.
  • āhāra-vihāra – आहार-विहार: condutas alimentares e de estilo de vida que influenciam o agni e a āma.

Tópicos centrais

Nesta seção, aprofundamos inicialmente a visão biomédica das complicações e, posteriormente, a leitura ayurvédica que ilumina fatores de vulnerabilidade e linhas de cuidado complementar.

Patofisiologia biomédica da úlcera péptica complicada

A úlcera péptica consiste na perda de substância na mucosa do estômago ou do duodeno que atinge a muscular própria. Entre os mecanismos que levam às complicações estão:

  • Destruição da barreira protetora (mucus, bicarbonato, fluxo sanguíneo) por fatores agressivos, como ácido gástrico e pepsina.
  • Infecção por Helicobacter pylori, que promove inflamação crônica, altera a secreção ácida e danifica a mucosa.
  • Uso de AINEs e corticóides, que inibem prostaglandinas e comprometem a integridade da mucosa.
  • Isquemia local, estresse severo, coagulopatias e lesões iatrogênicas, que aumentam o risco de sangramento.
  • Perfuração quando a úlcera progride até a serosa, permitindo o extravasamento do conteúdo gástrico e a peritonite química, seguida de infecção.

O sangramento pode ser arterial ou venoso, variando de hemorragia microscópica e anemia crônica até hemorragia maciça com choque. A perfuração apresenta quadro agudo com dor abdominal intensa, defesa muscular e risco de sepse.

Diagnóstico e avaliação inicial (biomédico)

Na emergência, o foco é na rápida estabilização: estabilização hemodinâmica, avaliação das vias aéreas, respiração e circulação, seguido de exames complementares para localizar a lesão e orientar o conduto terapêutico.

  1. Anamnese: história de dor epigástrica, vômito com sangue (hematêmese), melena, uso de AINEs ou anticoagulantes.
  2. Exame físico: sinais de choque, sinais de peritonite na perfuração, sinais de hipovolemia.
  3. Laboratório: hemograma, coagulograma, gasometria arterial, eletrólitos.
  4. Endoscopia digestiva alta: exame diagnóstico e terapêutico de escolha para sangramentos — possibilita hemostasia por injeção, termocoagulação ou hemoclipes.
  5. Tomografia computadorizada de abdome: útil na detecção de ar livre na perfuração e na orientação cirúrgica.

Abordagem terapêutica biomédica

O manejo varia conforme a presença de sangramento ativo ou perfuração:

  • Sangramento: ressuscitação volêmica, transfusão de sangue se necessário, inibição da secreção ácida com inibidores de bomba de prótons (IBPs) por via intravenosa, antibioticoterapia para H. pylori quando confirmada ou fortemente suspeita, além de intervenção endoscópica para hemostasia. Em caso de falha do método endoscópico, embolização radiológica ou cirurgia podem ser indicadas.
  • Perfuração: avaliação rápida; pequenas perfurações selecionadas podem ser tratadas de forma conservadora, com antibióticos de amplo espectro e observação, mas cirurgias (laparoscópica ou aberta) geralmente são necessárias para fechamento da perfuração e lavagem peritoneal, com suporte intensivo.

Visão ayurvédica: Pittaj Grahaṇī, Agni e Aama

Na perspectiva do Ayurveda, úlceras com sangramento e perfuração resultam de processos sistêmicos que enfraquecem a mucosa e geram inflamação e necrose. O padrão pittaja grahaṇī – पित्तज ग्रहणी descreve o predomínio de pitta no trato digestivo, manifestado por hiperacidez, queimação e erosões. Quando agni – अग्नि está viciado, a digestão falha e surge āma – आम, a qual obstrui canais (srotas) e promove inflamação e putrefação local, deixando a mucosa vulnerável a erosões e sangramentos. Desequilíbrios concomitantes de vāta – वात favorecem dor intensa e risco de deslocamento de tecidos que pode culminar em perfuração; desequilíbrios de kapha – कफ podem contribuir para obstrução e edema, dificultando o fluxo.

Dessa forma, o quadro complexo é interpretado como uma interação de excesso de pitta (corrupção da mucosa), vāta (mobilidade patológica) e a presença de āma, prejudicando a cicatrização e promovendo necrose e supuração.

Aplicações práticas

A seguir, apresentamos orientações práticas que traduzem a teoria. Ressaltamos que casos agudos demandam atendimento médico imediato e que as medidas ayurvédicas aqui descritas são complementares e de caráter educativo.

Triagem e condutas iniciais (quando suspeitar de complicação)

  1. Procure serviços de emergência em casos de vômito com sangue, fezes negras, dor abdominal intensa, síncope ou sinais de choque.
  2. Não induza vômito nem administre AINEs; informe se há uso de anticoagulantes.
  3. Documente medicamentos em uso, histórico de H. pylori, doenças hepáticas ou renais.

Princípios terapêuticos integrativos

Enquanto a medicina biomédica prioriza hemostasia, antibióticos, inibidores de secreção e procedimentos cirúrgicos, o Ayurveda busca restabelecer agni, eliminar āma e equilibrar os doṣa, de acordo com o padrão predominante. Entre as linhas de suporte alimentar e de estilo de vida sugeridas, destacam-se:

  • Avaliação do nidāna – निदान para identificar fatores dietéticos, substâncias e comportamentos que possam ter agravado o quadro (excesso de alimentos picantes, álcool, AINEs, refeições irregulares).
  • Medidas de suporte dietético e repouso digestivo até estabilizar o quadro (conceitos de āhāra-vihāra – आहार-विहार), evitando alimentos irritantes e que estimulam pitta.
  • Uso de auṣadha – औषध e de combinações de ervas (aushadha-yoga) com finalidade de reduzir inflamações, promover mucosa saudável e melhorar a digestão, incluindo exemplos como guḍūcī – गुडूची, harītakī – हरितकी e triphalā – त्रिफला, sob supervisão qualificada.
  • Procedimentos tradicionais (como pañcakarma) são geralmente contraindicados na fase aguda, sendo considerados apenas na fase de convalescença e sempre conduzidos por terapeutas experientes.

Lakṣaṇa, nidāna e linhas gerais de cikitsā (Ayurveda)

  • nidāna – निदान: consumo de alimentos muito quentes, condimentados, álcool; uso prolongado de AINEs; estresse extremo; irregularidades nas refeições; fatores que agravaram pitta e vāta.
  • lakṣaṇa – लक्षण: dor epigástrica ardente, sensação de queimação, náusea, vômito com sangue (hematêmese), fezes negras; sinais de pitta incluem sensação de queimação, sede, língua amarelada; sinais de vāta agravado são dor aguda, distensão abdominal.
  • cikitsā – चिकित्सा: estratégias gerais que visam remover fatores agravantes, restabelecer o agni com dietas leves, adotar condutas que pacifiquem pitta e vāta, eliminar a āma por meio de medidas digestivas suaves e uso de ervas específicas; além disso, é importante garantir reposição hídrica adequada e monitoramento antes de intervenções internas.

Considerações e cuidados

Existem limites claros entre o cuidado complementar e a emergência clínica. Pontos a considerar:

  • Úlcera sangrante ou perfurada constitui uma emergência: prioridade na avaliação e tratamento por serviços especializados, podendo envolver cirurgia.
  • Práticas ayurvédicas não substituem transfusões, endoscopia, administração intravenosa de antiácidos ou cirurgias quando indicadas.
  • Herbalagem e suplementação podem interagir com anticoagulantes e outros medicamentos; sempre informe a equipe médica sobre qualquer uso.
  • Após estabilização, a integração cuidadosa do Ayurveda pode favorecer a recuperação e prevenir recidivas, porém deve ser conduzida por profissionais qualificados e em consonância com a equipe médica.
  • Evite automedicação com AINEs ou medicamentos caseiros que possam mascarar sintomas ou agravar sangramentos.

Conclusão

A úlcera péptica complicada é um ponto de convergência entre a emergência biomédica e a riqueza interpretativa do Ayurveda. A medicina moderna fornece ferramentas essenciais para diagnóstico rápido e intervenção eficaz — como endoscopia, suporte hemodinâmico e cirúrgico — enquanto o Ayurveda oferece uma compreensão sistêmica dos fatores que fragilizam a mucosa: desequilíbrio do agni, acumulação de āma e predomínio de pitta e vāta. Uma prática verdadeiramente integrada respeita a urgência clínica, evita promessas de cura e utiliza o conhecimento tradicional para suporte, reabilitação e prevenção, sempre com diálogo entre as equipes e com segurança como princípio fundamental. Para aprofundar estudos, recomendamos explorar nossos programas de pós-graduação, as terapias oferecidas e os cursos e artigos no nosso blog sobre medicina tradicional e práticas integrativas.

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