Conceito visual da msa em diálogo com práticas ayurvédicas.

Atrofia de múltiplos sistemas (AMS/MSA): um diálogo entre a visão biomédica e as perspectivas do Ayurveda

Introdução

A Atrofia de Múltiplos Sistemas (AMS ou MSA, na sigla inglesa) é uma condição neurodegenerativa complexa que compromete funções autonômicas, motoras e, em graus variados, cognitivas. No campo biomédico, ela é descrita por sinais neurológicos claramente definidos, progressão típica e estratégias de manejo sintomático. Paralelamente, o corpo de saberes do Ayurveda oferece categorias conceituais — como alterações do doṣa, fragilização de tecidos (dhātu) e obstruções nos srotas — que possibilitam outros modos de compreensão, acompanhamento e apoio ao paciente. Este artigo propõe uma comparação cuidadosa entre essas duas perspectivas: expõe fundamentos biomédicos, apresenta conceitos ayurvédicos relevantes e elabora uma leitura comparativa, sem estabelecer equivalências clínicas diretas ou prometer substituições terapêuticas.

Fundamentos

Para que a comparação seja fecunda, é preciso delinear, com precisão e respeito às epistemologias distintas, o que cada campo descreve. A seguir, apresentamos os fundamentos essenciais de cada tradição.

Termos-chave

  • Vātavyadhi – वातव्याधी: na primeira menção, termo ayurvédico que denota doenças associadas ao desequilíbrio do doṣa vāta — वात; posteriores menções usar apenas IAST.
  • Majjā Dhātu – मज्जा धातु: na primeira menção, refere-se ao tecido nervoso, segundo a anatomia funcional do Ayurveda; posteriores menções usar apenas IAST.
  • Manovaha Srotas – मनोवह स्रोतस्: na primeira menção, canal ou via funcional responsável pelos processos da mente e sua relação com os sentidos; posteriores menções usar apenas IAST.
  • Doṣa (vāta, pitta, kapha): princípios dinâmicos que regem funções fisiológicas e psíquicas no Ayurveda.
  • Agni: o princípio digestivo/metabólico que organiza a transformação de alimentos, pensamentos e tecidos.
  • Srotas: canais fisiológicos que mantêm o fluxo de substâncias e informações no corpo.

Tópicos centrais

Agora aprofundamos nos contextos clínico-biológicos e nas leituras tradicionais, trazendo nuances, exemplos e uma leitura crítica que respeita a singularidade de cada perspectiva.

Contexto biomédico: definição, clínica e fisiopatologia

Na medicina ocidental, a MSA é classificada entre as Parkinsonianas atípicas. caracteriza-se por degeneração neuroanatômica que acomete núcleos cerebrais (ex.: oliva inferior, núcleos cerebelares, substância negra em alguns casos) e centros de controle autonômico (tronco encefálico e medula), resultando em disfunção do sistema nervoso autônomo (hipotensão ortostática, disfunção vesical), parkinsonismo e ataxia. Existem subtipos clínicos, como a predominância parkinsoniana — MSA-P — e a predominância cerebelar — MSA-C. A progressão costuma ser inexorável ao longo de anos.

Do ponto de vista fisiopatológico, estudos apontam acumulação anormal de proteína α-sinucleína em oligodendrócitos, perda de conexões neuronais e alterações na neurotransmissão. O diagnóstico é predominantemente clínico, complementado por exames de imagem (como ressonância magnética, com achados de atrofia cerebelar e do pedúnculo cerebelar médio, por exemplo) e avaliações autonômicas. O manejo biomédico foca no alívio sintomático, reabilitação, suporte autonômico e cuidados paliativos avançados.

Contexto ayurvédico: leituras, categorias e ênfases

O Ayurveda não desenha um mapa anatômico idêntico ao biomédico, mas dispõe de matrizes teóricas capazes de acolher perturbações que afetam movimento, equilíbrio autonômico e capacidade sensório-motora. Dentro desse arcabouço, categorias como vāta, majja e manovaha srotas são centrais para compreender quadros com predomínio de fragilidade neuromuscular, queda de tônus, tremores ou alterações do controle autonômico.

Vātavyadhi, historicamente, reúne um amplo espectro de transtornos em que a raiz vaga de distúrbio é o agravamento, deslocamento ou esgotamento do vāta. Sintomatologias motoras (rigidez, tremor, ataxia) e autonômicas (desordens do fluxo e da regulação) são frequentemente situadas sob esse pano de fundo conceitual. Majjā dhātu é o tecido responsável pela condução nervosa e pela densidade sensório-motora; sua sub-qualidade (dhatukṣaya) é empregada para pensar perda progressiva de função. Manovaha srotas descreve os fluxos sutis que conectam percepção, processamento e resposta — quando comprometidos, manifestam-se confusão, alterações nas reações emocionais e descoordenação sensorial.

Comparando abordagens: linguagem, objetivos e limites

Comparar as duas perspectivas exige reconhecer diferenças metodológicas: a biomedicina opera com definições anatomo-funcionais e critérios diagnósticos; o Ayurveda usa categorias funcionais que articulam corpo, mente e ambiente. Isso implica que qualquer tentativa de traduzir rigidamente um termo em outro corre o risco de reduzir ambos os saberes.

No entanto, é possível estabelecer correspondências heurísticas: quadros com perda progressiva de funções motoras e autonômicas são compreendidos na biomedicina como degeneração neural; no Ayurveda, podem ser enquadrados como condição em que vāta, atuando sobre majjā e nos manovaha srotas, produz dhatukṣaya e obstrução nos srotas. Reforço: essas correspondências não são equivalências clínicas diretas, mas ferramentas de cruzamento de olhares que enriquecem o manejo interdisciplinar.

Implicações epistemológicas e éticas

As diferenças epistemológicas trazem implicações éticas na prática clínica: evitar promessas de cura, reconhecer os limites das intervenções e escutar a experiência do paciente. Um diálogo respeitoso entre profissionais de neurologia, fisiatria, cuidados paliativos e praticantes de Ayurveda pode ampliar as opções de suporte — sem confundir linguagens e sem substituir decisões médicas baseadas em evidências.

Aplicações práticas

Transformamos conceitos em orientações práticas, sempre focando no suporte, na redução de sintomas e na melhoria da qualidade de vida — sem sugerir substituições terapêuticas ou doses específicas.

Avaliação integrativa

Uma avaliação integrativa consiste em mapear, junto à equipe multiprofissional, as manifestações biomédicas (mobilidade, respiração, função autonômica, deglutição) e os padrões funcionais descritos pelo Ayurveda (predominância do doṣa, estado de agni, condição de majjā). Esse levantamento favorece planos de cuidado menos fragmentados, alinhando fisioterapia, fonoaudiologia, suporte nutricional e práticas ayurvédicas de suporte emocional e rotineiro.

Āhāra–vihāra e rotina

No Ayurveda, recomenda-se atenção cuidadosa à alimentação (āhāra) e à rotina diária (vihāra), com foco em alimentos fáceis de digerir, que sustentem dhātu sem sobrecarregar agni. Princípios como regularidade de refeições, hidratação adequada, texturas que favoreçam deglutição segura e pequenas porções frequentes são compatíveis com recomendações biomédicas para pacientes com risco de disfagia e perda de peso.

Abordagens fito-espirituais e suporte

O Ayurveda apresenta conceitos de rasāyana (rejuvenescedores) e fórmulas que visam fortalecer o tecido nervoso; em textos introdutórios, é possível mencionar plantas tradicionalmente associadas ao suporte neurológico — por exemplo, harītakī (हरितकी), guḍūcī (गुडूरी), e misturas como triphalā (त्रिफला) — sempre destacando seu caráter histórico e não prescritivo. Qualquer uso de aushadha-yoga deve ocorrer sob acompanhamento de praticante qualificado e em diálogo com a equipe médica, observando interações e segurança.

Práticas de movimento e respiração

Intervenções físicas adaptadas (como fisioterapia neurodegenerativa) e práticas de yoga compatíveis com limitações motoras podem melhorar a manutenção da mobilidade, do equilíbrio e da qualidade de vida. Técnicas suaves de āsana, alongamento passivo, mobilizações articulares e prāṇāyāma simples, com orientação adequada, influenciam o tônus, a respiração e a regulação autonômica. Cuidados e contraindicações devem ser avaliados caso a caso.

Considerações e cuidados

Ao transitar entre saberes, alguns cuidados são essenciais:

  • Evitar traçar equivalências clínicas diretas entre categorias do Ayurveda e diagnósticos biomédicos — use correspondências heurísticas, sempre com humildade epistemológica.
  • A avaliação médica é imprescindível diante de sinais neurológicos progressivos; não substituir condutas diagnósticas e terapêuticas fundamentadas em evidências.
  • Qualquer fitoforma ou terapia complementar deve ser supervisionada e avaliar possíveis interações medicamentosas, especialmente em pacientes polimedicados.
  • Priorizar a qualidade de vida, o conforto, a fisioterapia e o manejo autonômico, respeitando as preferências culturais e espirituais do paciente.

Conclusão

A comparação entre a visão biomédica da AMS/MSA e as perspectivas do Ayurveda revela terrenos de complexidade e complementaridade. Enquanto a medicina contemporânea descreve mecanismos neurodegenerativos, critérios diagnósticos e estratégias sintomáticas, o Ayurveda oferece matrizes funcionais — vāta, majja, manovaha srotas — que orientam cuidados de suporte, rotinas e práticas físicas e dietéticas. Esse diálogo exige cautela: é frutífero quando serve para ampliar opções de cuidado, respeitando limites, evitando promessas curativas e preservando a centralidade do paciente.

Para aprofundar, sugerimos leituras e caminhos de formação em ambientes multiprofissionais, além de consultas a fontes confiáveis sobre MSA e textos clássicos do Ayurveda. No Espaço Arjuna, você encontra recursos e programas que dialogam com essas perspectivas, como nossos programas de Ayurveda e a coleção de artigos sobre saúde integrativa, que exploram práticas seguras e contextualizadas.

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